21 de novembro de 2016

Rememorações

Aos amigos Regina e Guilherme,
que andam a lançar âncoras de ar,
Ícaros melhorados.


     Há algo no silêncio das árvores que seduz os que amam profundamente. É um silêncio misericordioso e benevolente, que parece atrair as confissões dos amantes, sem impor-lhes o fardo do julgamento. Pelo seu amplo vão sem paredes, sustentado por uma coluna central em cujos veios correm a seiva da vida, não se agarram culpas ou preconceitos; e existem amores que, talvez, somente nessa quietude indolente – livre de morais e costumes – encontram abrigo.

     O sussurro das folhas secas e o frescor do chão, protegido pelas sombras, acalentam as almas que ali buscam refúgio. “Vinde a mim”, parecem dizer as árvores aos que amam livremente – visto que são os amores livres que se aventuram nas profundezas do sentimento.

     As raízes subterrâneas tornam firme o solo, como os alicerces das catedrais, e sobre elas edifica-se o terno silêncio. Pois sim, a ternura exige firmeza.

     Sob o sol ou sob a lua, os galhos e folhas das árvores formam lindos vitrais, que pontilham os corpos dos que ali se entregam. Foi assim com o Cristo, antes da crucificação. Prevendo a morte, angustiou-se ao pé de uma oliveira e ali ponderou o valor de sua vida, que certamente, como homem, amava, e o valor de sua amada fé. Sob a sombra da catedral de galhos e folhas retorcidas, a balança oscilava tênuamente… valia a pena morrer pelo que acreditava? O fiel equilibrava com maestria as opções do Cristo, que, com o peito apertado, precisava se decidir. Deveria se submeter ao sacrifício anunciado nas profecias? “O suor tornou-se como grossas gotas de sangue a escorrer-lhe por terra”, diz-nos Lucas sobre a angústia do Deus tornado homem. Ali, suponho, sob o silêncio arbóreo, o Cristo escolheu morrer de amor.

     Recordam os cristãos, todos os anos, a decisão tomada por esse homem sob as folhas da oliveira.

     Milênios depois, num ato muito mais humilde, mas que ecoa o amor nazareno, amaram-se os amantes de Wislawa Szymborska, sob uma árvore, à beira de um lago:

Amaram-se debaixo da aveleira
sob sóis de orvalho
com folhas secas e terra
grudadas no cabelo

Ajoelhados à beira do lago,
as folhas retiraram,
e reluzentes, como estrelas,
os peixes se aproximaram”.

     Agora, a poetiza polonesa aflige-se com a fragilidade desse amor. Ela sabe que, ao contrário da decisão de Cristo, a escolha desses amantes, sob a aveleira, talvez não viva para sempre, talvez se esvaia com o tempo, não suporte os milênios, apague-se da memória de ambos, até que não haja mais nenhum resquício daquele amor.

     Não existirão disputas acadêmicas sobre o sentimento que fez tremer aqueles corpos sob a aveleira, não se derramará sangue por aquela lembrança, não se erguerão templos por aquele evanescente evento, sabe a polonesa.

      Por isso, aquele amor, a poetiza quer salvá-lo, não quer que se perca.
 
     Szymborska invoca então a piedade de quem presenciou aquele ato sob o domo de galhos e folhas. Pede encarecidamente a uma andorinha que não deixe que os amantes se esqueçam do amor vivido sob o vitral de orvalho.

Coração de andorinha
tem piedade deles.

O reflexo das árvores
nas marolas esfumaçado,
andorinha, faz com que nunca
seja por eles olvidado”.

     Mas como? Como pode uma andorinha, essa testemunha oculta, manter viva a lembrança de um momento? Como pode aquele passarinho fixar no elemento volátil da memória as tênues recordações que, para os amantes, ainda estão tão frescas e presentes quanto o cheiro das folhas, da terra, quanto as nuvens do céu? Como, meu Deus, prender uma nuvem e evitar que ela se perca na imensidão do firmamento?

     Szymborska sabe que aquilo que pede à andorinha é tarefa das mais ousadas ao espírito: Apreender o inapreensível. Tocar o intocável, como quis Ícaro, com suas asas de cera.

     Apesar da impossibilidade da empreitada, a piedade de Szymborska é maior, e ela invoca a andorinha, com as qualidades que o pequeno pássaro irá precisar para capturar a memória volátil. Como a deusa Atenas, Szymborska concede à andorinha as virtudes necessárias para que a ave alcance seus propósitos.

Andorinha, espinho de nuvem,
âncora do ar,
Ícaro melhorado (...)”

     Szymborska se dá conta de que a lembrança da andorinha talvez sirva como uma âncora para o barco fátuo de recordações dos amantes, um espinho no qual fique agarrada a memória. Szymborska  inventa um jeito, metafórico, de prender as reminiscências que, por certo, vão se esvair. Ao ver uma andorinha, “âncora do ar”, “espinho de nuvem”, cruzar o céu, talvez eles rememorem aquele instante sob a aveleira.

     Então, ao final do poema, Szymborska, com o coração cheio de piedade por aqueles amantes, começa a lançar inúmeras âncoras e espinhos para que a memória não seja levada pelo tempo, para que, ao se deparar com as mais simples contingências do cotidiano, os amantes rememorem aquele momento debaixo dos vitrais de orvalho:

andorinha caligrafia,
ponteiro sem os minutos (…)

andorinha silêncio agudo,
luto alegre,
auréola dos amantes,
tem piedade deles”.

     Tantas âncoras e espinhos são lançados para segurar quela lembrança: “caligrafia”, “ponteiro sem os minutos”, “silêncio agudo”, “luto”, “auréola dos amantes”… quando um daqueles amantes, dos quais se apieda Szymborska, num futuro distante, estiver contemplando um relógio, aguardando o tempo passar, quando estiver lendo um texto com uma linda caligrafia, quando alguém amado se for, quando vir dois amantes alegres andando pela rua, nesses pequenos acontecimentos estará agarrada, ancorada uma lembrança e virá à sua mente a tarde em que se amaram sob a aveleira: “O reflexo das árvores/nas marolas esfumaçado (...)”.

      Szymborska sabe, como o Cristo na noite que antecedeu a crucificação, que a memória precisa de migalhas para seguir, que ela precisa ser pregada em elementos que a resgatem do esquecimento: "Isto é o meu corpo, que será entregue por vós. Fazei isto em minha memória".
 
     O que mais poderia fazer Szymborska? Com essas âncoras lançadas, a poetiza encerra o poema, como o fez, nas aventuras dos “Velhos Marinheiros”, de Jorge Amado, o capitão Vasco Moscoso de Aragão, capitão de longo curso, único, dentre os velhos marinheiros, a prever os ventos, a lançar todas as amarras, todas as âncoras, todos os “strings” todas as espias, todas as manilhas, todos os ferros e salvar o seu navio.

     Rememorar, rememorar, lançar aos amantes pequenos espinhos onde se agarrarem as memórias, é o que pode a piedade de Szymborska.

     Ao verter o poema Upamiętnientie (Rememoração) para o português, a tradutora Regina Przybycien lançou mais uma âncora, mais um espinho de nuvem, para que o amor sob a aveleira, descrito por Szymborska não se perdesse, para que a própria poesia fosse rememorada.

Coração de andorinha
tem piedade deles”.

     Essas âncoras do poema de Szymborska, esses espinhos, não encontram melhor tradução em imagens que as fotografias “monotrípticas” do amigo Guilherme Ghizoni, espinhos de nuvens nos quais se agarram as mais voláteis memórias, âncoras de ar.

     Emociona-me ver amigos buscando o inalcançável, Ícaros melhorados.

     Abaixo, o poema traduzido por Regina Przybycien e um dos "monotrípticos" de Guilherme Ghizoni:

Rememoração

Amaram-se debaixo da aveleira
sob sóis de orvalho
com folhas secas e terra
grudadas no cabelo.

Coração de andorinha
tem piedade deles.

Ajoelhados à beira do lago,
as folhas retiraram,
e reluzentes, como estrelas,
os peixes se aproximaram.

Coração de andorinha
tem piedade deles.

O reflexo das árvores
nas marolas esfumaçado,
andorinha, faz com que nunca
seja por eles olvidado.

Andorinha, espinho de nuvem,
âncora do ar,
Ícaro melhorado,
fraque ascendido ao céu,
andorinha caligrafia,
ponteiro sem os minutos,
protopássaro gótico,
estrabismo nos céus,

andorinha silêncio agudo,
luto alegre,
auréola dos amantes,
tem piedade deles.

(SZYMBORSKA, Wislawa, Um amor feliz, Companhia das Letras, 2016. Trad. Regina Przybycien)

http://www.ghisoni.com.br/Monotripticos/

Fotografia: Guilherme Ghizoni