4 de dezembro de 2016

Silêncio de Botequim

De acordo com um provérbio africano,
se você quer ir rápido, vá sozinho.
Mas se você quer ir longe, vá acompanhado.
Nós temos um longo caminho à nossa frente;
nós só poderemos percorrê-lo se formos juntos".

Kofi Annan

     Campo Grande é uma cidade que se espraia pela planura do Cerrado. É como um grande pedaço de charque cortado fino e aberto no ar seco. As quadras são imensas, quase intransponíveis; entre uma esquina e outra parece que se desdobra um deserto. As calçadas sem sombras, sob o calor do Planalto Central, estão sempre vazias. A ausência de gente indo e vindo pelas vias torna a urbe impessoal; um corpo que caminha é sempre estranho na paisagem.
     Não há testemunhas em Campo Grande. As coisas acontecem em segredo e só depois de algum tempo é que o segredo se espalha, já distorcido, às vezes aumentado, outras, sufocado.
     Dia desses eu estava sentado num bar, olhando a rua vazia, devia ser lá por quatro horas da tarde, quando notei uma menina caminhando pela calçada, com uma pasta de plástico debaixo do braço e um rolo de durex enfiado no pulso, como um bracelete. De onde ela viera?
     Campo Grande tem dessas coisas. Por mais plana que seja a cidade, por mais que a vista alcance longe, quando notamos uma pessoa andando, nunca temos certeza de onde ela apareceu. Tem-se a impressão de que os solitários corpos que caminham pelas ruas vazias surgem do nada e no nada se esvaem.
     Essa menina tinha cabelos negros e compridos, que estavam um pouco desarrumados, vestia uniforme escolar, meio surrado, que indicava que ela provavelmente estudava no período matutino e não trocara de roupa desde o final das aulas. Era magra, seu corpo mirrado mal preenchia a camiseta e a calça, cujos panos oscilavam igual bandeiras à medida que caminhava. No pulso esquerdo, o rolo de durex dançava solto, quase escapando pela mão, mas a menina habilmente erguia o antebraço e dobrava a munheca quando a fita queria escapulir. Aquela criança não tinha mais de treze anos de idade, suponho, e vagava sozinha pelas ruas desertas de Campo Grande.
     Pois essa pequena figura feminina parou perto de um poste na esquina, tirou um papel de dentro da pasta e ali o colou com a fita durex. Caminhou incontáveis passos até chegar ao poste que ficava no meio da quadra e repetiu a operação. Fez o mesmo no poste da outra esquina, perto do bar onde eu estava.
     Havia uma certa tristeza no seu jeito de andar, o seu corpo parecia retesado. Notei que, de tão miúda, ela quase não tinha sombra. Quando passou por mim, vi que chorava, tinha um semblante sombrio, o nariz irritado pela coriza do choro, a boca arqueada para baixo e os lábios firmemente apertados. Debaixo do sol quente, alguns fios de cabelo colavam no suor e nas lágrimas do rosto.
     Sozinha, ela seguia seu rumo, com sua pulseira improvisada, parando a cada poste, pregando os papéis que levava dentro da pasta. De quadra em quadra, aquela figura quase sem sombra sumiu pelas esquinas da cidade.
     Sentado no bar, notei o vazio reocupar a rua. Era como se a passagem da menina nunca tivesse ocorrido. O que será que ela tanto pregava? Por que chorava? Não dei muita importância a esses pensamentos, transmitiam um jogo de futebol na televisão, algum campeonato europeu com times cheios de jogadores e técnicos estrangeiros. Como será que se comunicavam? Entendiam o que uns gritavam para os outros, ou o que cantavam as torcidas? Por que será que ainda faziam distinções entre campeonato inglês, alemão, francês, espanhol, se os times, de fato, eram torres de Babel?
     Com o final da partida, ao olhar para rua, a curiosidade, mais uma vez, despontou em meu espírito. Por quse duas horas a dúvida hibernara. O que eram aqueles cartazes?
     Já começava a escurecer e, de meu posto, não era possível ver o que havia nos papéis. Levantei-me e fui até a esquina. No poste, um cartaz que não fazia muito sentido: Nele estava estampada a foto da própria menina. No início, foi difícil reconhecê-la, pois naquela fotografia seus olhos cintilavam, ela sorria um sorriso imenso, acenava para a câmera e tinha a cabeça coberta por um véu muçulmano, hijab, de cor turquesa. Não lembrava a figura triste que passara na frente do bar mas, com certeza, era a mesma menina. A informação, escrita numa redação um pouco truncada, com erros de grafia, era de que aquela criança estava desaparecida, sumira na tarde daquele dia, fora vista pela última vez saindo da escola, família aflita, telefone de contato, chamava-se “Najwa”, recém-chegada da Síria, falava pouco o idioma português.
     Em frente ao poste, de pé, olhei para o rumo que a menina havia tomado, mas só havia a rua.
     Por que ela pregava fotos de si mesma, informando seu próprio desaparecimento, pedindo que a encontrassem?
     Anotei o telefone e voltei para o bar.
     Na TV, apresentadores discutiam o jogo que terminara há pouco. Quem havia sido o melhor jogador da partida? O meio-campo colombiano, do time espanhol ou o atacante croata do time italiano?
     Pensando sobre o cartaz, concluí que não era de todo estranho.
     De fato, aquela menina feliz da fotografia desaparecera. Por certo sumiu quando deixou seu País, seus amigos, seus costumes, vindo desembarcar nessa terra desconhecida onde não se vê gente pelas ruas. Com certeza, a família a queria de volta, alegre, sorridente. Quem mais sentia sua falta era a própria Najwa. Tinha saudades de si mesma, da Najwa que sorria com olhos brilhantes e que vestia hijabs coloridos. Talvez por isso, com o pouco português que aprendera, tenha redigido aquele pedido de ajuda, por isso saíra aquela tarde, sob o sol do Cerrado, sozinha, colando cartazes, na esperança de que alguém, nesse mundo estrangeiro, a encontrasse.
     Voltei a olhar a rua e, por ela, pelos postes, não passou uma viva alma. Um ou outro carro transitava pela via, alheio às calçadas. Aqueles cartazes não seriam lidos. Ninguém caminha pelas ruas de Campo Grande, não há testemunhas nessa cidade. Ninguém encontrará aquela menina sorridente que desapareceu de uma família síria. Ninguém saberá que está perdida.
       A ignorância é uma bênção.
     Liguei para o número do cartaz. Após alguns toques, ouvi uma mensagem num idioma desconhecido. Enquanto ouvia aquela entoação estranha de sons misteriosos, os comentaristas esportivos concluíram que o melhor jogador da partida havia sido um lateral romeno, do time italiano.