25 de junho de 2017

Fotografias da Corcova


MAR PORTUGUÊS

"Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena".

Fernando Pessoa

       O Brasil tem as costas e a corcunda mergulhadas no Oceano Atlântico.

       Pegue um mapa mundi qualquer e veja lá se esse território gigante não tem a canastra e o cupim bem molhados pelo azul que inunda o globo.

       E esse jeito de deitar-se no mundo, de se acomodar no planeta, deu ao Brasil um grande litoral, cheio de praias. Ipanema, Copacabana, Praia Grande, Brava, Jurerê, do Espelho, do Forte, do Rosa, da Pipa, do Futuro… O mundo fala de nós pelas nossas costas.

       Agora, por mais que tenha um mar sem fim rebentando noite e dia em suas areias e em sua carcova, existem brasileiros que vão nascer, crescer e morrer sem nunca ver o mar que banha o País.

       Vão ouvir falar das praias, é certo. Pela tevê, nas novelas e filmes, pelo rádio, por fotografias, pelas histórias que outros lhes contarem, mas sentir o repuxo das marés debaixo do solado dos pés, o gosto salobro da sopa onde boia o mundo, não vão.

       Isso porque o Brasil não é só a costa. Esse País tem um dentro, tem suas entranhas. E nesse interior do País, que se espalha por milhares de quilômetros América Latina adentro, tem gente.

       As tripas do Brasil são secas e são úmidas, têm catinga e floresta, chapadas e cânions onde não chega o Atlântico. As entranhas ficam longe da costa. Por dentro, no fundo, o País não é só praia.

       Eu mesmo, moro no Cerrado, no planalto central do Brasil. Há quantos anos não vejo o mar? Perdi a conta. Eu perco a conta das coisas que não acontecem.

       E o mar, há muito, não me acontece. O que me encharca é o ar seco e quase parado, a vegetação rasteira, o horizonte infinito de uma geografia plana e de solo vermelho, cobertos por um céu alto. O Cerrado é uma vastidão árida e sem marolas.

       Foi com esse espírito ressequido pelo inverno sul mato-grossense que, semana retrasada, ouvi a história de uma menina que não conhecia o mar. Uma menina que, como eu, morava longe da costa, habitava algum canto do interior do País.

       Confesso-lhes que meu coração – que há muito não pensava no oceano – apertou um tanto ao ouvir aquele causo de um mar não visitado. Eu perco a conta das coisas que não me acontecem, mas me aflige o que não acontece aos outros.

       Fiquei sabendo que aquela menina de cabelos vermelhos – um vermelho cor de crepúsculo - colecionava postais de cidades litorâneas, recortes de revistas com figuras de praias… ela sabia que brotavam coqueiros nas areias e que os coqueiros davam cocos. E chorava de vontade de conhecer as águas que banhavam o espinhaço do Brasil.

        As fotos, que ela guardava numa caixinha, tinham o mar e as ondas, mas não tinham as marés e a brisa.

       Então, essa menina me segredou que num passeio escolar à lagoa da cidade comprou um coco verde, igual aos que vira pendurados nos coqueiros à beira-mar, nas fotografias e postais.

       Só que ela não comprou o coco como nós compramos nossas coisas, trocando dinheiro por tralhas. Não. A menina, na verdade, adotou um coco, como quem recebe uma esperança, um afeto, um desejo.

       Aquele coco, no fundo, já era dela antes de brotar no coqueiro, antes dela sacar seu dinheirinho da carteira, antes do passeio à lagoa. Aquele coco já havia brotado e amadurecido nos seus sonhos.

       E, de maduro, o coco caiu na sua vida como uma promessa, como uma semente de um mar que logo, logo iria brotar.

       Só que longe da praia, o coco mudou de cor, de tamanho e secou… a menina viu, dia a dia, secar o mar que havia no coco.

       E do sonho que era aquele coco, a menina despertou... Longe da costa brasileira, com o mar dentro de si cada vez maior.

       Não sei se depois que conversamos a menina foi ver o oceano. Espero reencontrá-la um dia para saber.

       Essa história, quem me contou foi Ninfa Parreiras. Na verdade, na verdade, ela me leu em voz alta o seu livro “Com a Maré e o Sonho”. Para mim, ficou sendo uma história contada, porque toda vez que leio o texto, lembro é da voz de Ninfa Parreiras desfiando a narrativa.